quinta-feira, 31 de março de 2011

Memórias e política.


Na sexta dia 25 de março participei do encerramento de um excelente evento sobre memória, arquivos e museus. Caprichosamente organizado por acadêmicos do curso de história, o ciclo de palestras reuniu excelentes experiências e debates para os profissionais do setor, que vieram de diversas cidades do estado além do Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo.
Adoro participar de eventos desse tipo, pois sempre me instigam grandes reflexões sobre minha trajetória profissional, minhas escolhas, meu posicionamento ideológico e principalmente sobre minha conduta em relação ao trabalho que desenvolvo hoje.
Poucas pessoas do meu seleto círculo de amigos têm clareza do meu atual trabalho. Aqueles que são apenas conhecidos então, nem se fala. Acho q muitos nem tem idéia do que se trata quando falo que trabalho com assessoria para a elaboração de projetos e captação de recursos federais a prefeituras de todo o estado de Santa Catarina.
Adoro o que faço, e tive uma excelente escola. Trabalhei na prefeitura de Itajaí e tenho grande orgulho do aprendizado que tive lá, em especial na FGML, onde além do aprofundamento acadêmico, adquiri o conhecimento técnico burocrático.
Aí, nesses eventos de cunho extremamente acadêmico que consigo visualizar meus caminhos mesmo. E confesso, sem falsa modéstia, que me orgulho muito dos meus passos, e de cada pessoa que tenha me auxiliado na escolha dos meus trajetos. Pois o trabalho com memória, patrimônio e coisa pública não pode ser isento de ética, comprometimento e cuidado técnico.  Não é por que trabalhamos com cultura e com pessoas que as coisas podem ser feitas de qualquer jeito. As fontes históricas não podem ser simplesmente lúdicas. Há de serem fidedignas, colhidas profissionalmente e tecnicamente, para que possam inspirar análises e narrativas significativas e, assim, promover a pluralidade das identidades sociais. Entrevistar não é somente um mecanismo para reunir informações. São necessárias habilidades humanas como paciência, humildade, vontade de aprender com os outros e de respeitar seus pontos de vista e valores, mesmo que você não compartilhe destes. (SLIM, Hugo e THOMPSON, Paul. 1993, p.3)
Esse evento, em especial, proporcionou o encontro com grandes parceiros, como a Profª Drª Elizabete Tamanini, e o Prof. Dr. José Roberto Severino, aos quais devo grande parte do meu aprendizado na área do patrimônio, memória social e museus. Sempre é bom ouvi-los, e sempre aprendo mais quando os ouço. Encontrei também amigos com os quais trabalhei na FGML, com quem muito aprendi também, e além do saber técnico, o saber do respeito, do carinho e do saber ouvir.
A organização do evento está de parabéns, por proporcionar um debate saudável, por questões importantes na nossa região, onde sabemos que há muitas maquiagens possíveis dos trabalhos realizados. Pois, uma coisa é a nova política nacional e todas as suas intenções, outra coisa é o posicionamento ideológico dos governos e gestores diante das políticas nacionais, sendo muitas vezes mais fácil e interessante para certos grupos maquiar algumas ações para que pareçam adequadas às diretrizes de democratização dos direitos de todos e todas à memória e patrimônio, do que realmente implantar ações que garantam isso.
Para finalizar, compartilho um trecho do grande mestre Paulo Freire, talvez o meu trecho preferido de toda a sua obra. Espero que inspire boas reflexões (os grifos são meus).
Se a mudança faz parte da experiência cultural, fora da qual não somos, o que se impõe a nós é tentar entende-la na ou nas suas razões de ser. Para aceitá-la ou negá-la, devemos compreendê-la, sabendo que, se não somos puro objeto seu, ela não é tampouco o resultado de decisões voluntaristas de pessoas ou de grupos. Isto significa, sem dúvida, que me face das mudanças de compreensão, de comportamento, de gosto, de negação de valores ontem respeitados, nem podemos simplesmente nos acomodar, nem também nos insurgir de maneira puramente emocional.  (...)
Faz parte também desta percepção lúcida da mudança a natureza política e ideológica de nossa posição em face dela independentemente de estarmos conscientes disto ou não.
Mas o que quero dizer é o seguinte: na medida em que nos tornamos capazes de transformar o mundo, de dar nome às coisas, de perceber, de Inteligir, de decidir, de escolher, de valorar, de, finalmente, eticizar o mundo, o nosso mover-nos nele e na historia vem envolvendo necessariamente sonhos por cuja realização nos batemos. Daí então, que a nossa presença no mundo, implicando escolha e decisão, não seja uma presença neutra. A capacidade de observar, de comparar, de avaliar para, decidindo escolher, com o que, intervindo na vida da cidade, exercemos nossa cidadania, se erige então como uma competência fundamental.
Se a minha não é uma presença neutra na historia, devo assumir tão criticamente quanto possível sua politicidade. Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transformá-lo. Se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar possibilidade que tenha para não apenas falar da minha utopia, mas para participar de práticas com ela coerentes.
(FREIRE, Paulo, 1921-1997) Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000. P 32 e 33).

Abraços,

Evelise

quarta-feira, 9 de março de 2011

NÓS MULHERES

Bom dia galera!

Depois de muito tempo sumida do Blog, cá estou eu novamente.
Mutcho  trabalho, casa, bichos... tenho estado apertada de tempo mesmo.

Pensando nas inúmeras atribuições e responsabilidades que ser mulher me acarreta, e tendo recedido cumprimentos no dia de ontem pelo Dia Internacional da Mulher, decidi compartilhar com vocês um excelente texto do Prof. Boaventura de Spusa Santos, extraído da Carta Maior, que nos ajuda a entender melhor a construção desses conceitos de ser mulher na atualidade.

Boa leitura!
Beijinhos da Eve


As mulheres não são homens

A cultura patriarcal tem uma dimensão particularmente perversa: a de criar a ideia na opinião pública que as mulheres são oprimidas e, como tal, vítimas indefesas e silenciosas. Este estereótipo torna possível ignorar ou desvalorizar as lutas de resistência e a capacidade de inovação política das mulheres.

No passado dia 8 de março celebrou-se o Dia Internacional da
Mulher. Os dias ou anos internacionais não são, em geral, celebrações.
São, pelo contrário, modos de assinalar que há pouco para celebrar e
muito para denunciar e transformar. Não há natureza humana assexuada;
há homens e mulheres. Falar de natureza humana sem falar na diferença
sexual é ocultar que a “metade” das mulheres vale menos que a dos
homens. Sob formas que variam consoante o tempo e o lugar, as
mulheres têm sido consideradas como seres cuja humanidade é
problemática (mais perigosa ou menos capaz) quando comparada com a
dos homens. À dominação sexual que este preconceito gera chamamos
patriarcado e ao senso comum que o alimenta e reproduz, cultura
patriarcal.

A persistência histórica desta cultura é tão forte que mesmo
nas regiões do mundo em que ela foi oficialmente superada pela
consagração constitucional da igualdade sexual, as práticas quotidianas
das instituições e das relações sociais continuam a reproduzir o
preconceito e a desigualdade. Ser feminista hoje significa reconhecer que
tal discriminação existe e é injusta e desejar activamente que ela seja
eliminada. Nas actuais condições históricas, falar de natureza humana
como se ela fosse sexualmente indiferente, seja no plano filosófico seja no
plano político, é pactuar com o patriarcado.

A cultura patriarcal vem de longe e atravessa tanto a cultura
ocidental como as culturas africanas, indígenas e islâmicas. Para
Aristóteles, a mulher é um homem mutilado e para São Tomás de Aquino,
sendo o homem o elemento activo da procriação, o nascimento de uma
mulher é sinal da debilidade do procriador. Esta cultura, ancorada por
vezes em textos sagrados (Bíblia e Corão), tem estado sempre ao serviço
da economia política dominante que, nos tempos modernos, tem sido o
capitalismo e o colonialismo. Em Three Guineas (1938), em resposta a um pedido de apoio financeiro para o esforço de guerra, Virginia Woolf
recusa, lembrando a secundarização das mulheres na nação, e afirma
provocatoriamente: “Como mulher, não tenho país. Como mulher, não
quero ter país. Como mulher, o meu país é o mundo inteiro”.

Durante a ditadura portuguesa, as Novas Cartas Portuguesas publicadas em 1972 por Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, denunciavam o patriarcado como parte da estrutura fascista que
sustentava a guerra colonial em África. "Angola é nossa" era o correlato de
"as mulheres são nossas (de nós, homens)" e no sexo delas se defendia a
honra deles. O livro foi imediatamente apreendido porque justamente
percebido como um libelo contra a guerra colonial e as autoras só não
foram julgadas porque entretanto ocorreu a Revolução dos Cravos em 25
de Abril de 1974.

A violência que a opressão sexual implica ocorre sob duas formas,
hardcore e softcore. A versão hardcore é o catálogo da vergonha e do
horror do mundo. Em Portugal, morreram 43 mulheres em 2010, vítimas
de violência doméstica. Na Cidade Juarez (México) foram assassinadas nos
últimos anos 427 mulheres, todas jovens e pobres, trabalhadoras nas
fábricas do capitalismo selvagem, as maquiladoras, um crime organizado
hoje conhecido por femicídio. Em vários países de África, continua a
praticar-se a mutilação genital. Na Arábia Saudita, até há pouco, as
mulheres nem sequer tinham certificado de nascimento. No Irão, a vida de
uma mulher vale metade da do homem num acidente de viação; em
tribunal, o testemunho de um homem vale tanto quanto o de duas
mulheres; a mulher pode ser apedrejada até à morte em caso de
adultério, prática, aliás, proibida na maioria dos países de cultura islâmica.

A versão softcore é insidiosa e silenciosa e ocorre no seio das famílias,
instituições e comunidades, não porque as mulheres sejam inferiores mas,
pelo contrário, porque são consideradas superiores no seu espírito de
abnegação e na sua disponibilidade para ajudar em tempos difíceis.
Porque é uma disposição natural. não há sequer que lhes perguntar se
aceitam os encargos ou sob que condições. Em Portugal, por exemplo, os
cortes nas despesas sociais do Estado actualmente em curso vitimizam em
particular as mulheres. As mulheres são as principais provedoras do
cuidado a dependentes (crianças, velhos, doentes, pessoas com
deficiência). Se, com o encerramento dos hospitais psiquiátricos, os
doentes mentais são devolvidos às famílias, o cuidado fica a cargo das
mulheres. A impossibilidade de conciliar o trabalho remunerado com o
trabalho doméstico faz com que Portugal tenha um dos valores mais
baixos de fecundidade do mundo. Cuidar dos vivos torna-se incompatível
com desejar mais vivos.

Mas a cultura patriarcal tem, em certos contextos, uma outra
dimensão particularmente perversa: a de criar a ideia na opinião pública
que as mulheres são oprimidas e, como tal, vítimas indefesas e silenciosas.

Este estereótipo torna possível ignorar ou desvalorizar as lutas de
resistência e a capacidade de inovação política das mulheres. É assim que
se ignora o papel fundamental das mulheres na revolução do Egipto ou na
luta contra a pilhagem da terra na Índia; a acção política das mulheres que
lideram os municípios em tantas pequenas cidades africanas e a sua luta
contra o machismo dos lideres partidários que bloqueiam o acesso das
mulheres ao poder político nacional; a luta incessante e cheia de riscos
pela punição dos criminosos levada a cabo pelas mães das jovens
assassinadas em Cidade Juarez; as conquistas das mulheres indígenas e
islâmicas na luta pela igualdade e pelo respeito da diferença,
transformando por dentro as culturas a que pertencem; as práticas
inovadoras de defesa da agricultura familiar e das sementes tradicionais
das mulheres do Quénia e de tantos outros países de África; a resposta
das mulheres palestinianas quando perguntadas por auto-convencidas
feministas europeias sobre o uso de contraceptivos: “na Palestina, ter
filhos é lutar contra a limpeza étnica que Israel impõe ao nosso povo”.

Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).